Um investimento na paz e na segurança, disse o presidente da Conselho Europeu, Charles Michel, a propósito dos vinte anos do maior alargamento da UE. Agora, com a guerra de volta à Europa, "a próxima vaga de alargamento é mais uma vez um encontro com a história", um "imperativo". Afinal, "a 'Europa' é muito mais do que uma geografia. A 'Europa' é uma ideia, um sonho, uma viagem, um farol de esperança".

E a viagem já começou. Há muito se fala em alargamento, como há muito se fala da necessidade de novas fontes de financiamento para a União Europeia. As novas receitas ainda não chegaram, mas as adesões estão previstas já para 2030, precipitadas, em parte, pela guerra na Ucrânia. E é impossível separar as duas questões. Todos garantem que haverá benefícios mútuos, mas ninguém ignora os desafios que é preciso enfrentar.

"O alargamento será um problema, porque implica superar dificuldades, não adianta ignorá-las. Mas é também uma oportunidade e um objetivo estratégico importante da União Europeia", afirma o deputado europeu Pedro Silva Pereira, eleito pelo PS, do grupo Socialistas e Democratas (S&D), co-relator do relatório sobre o alargamento.

"Para estarmos em condições de avançar para o alargamento é preciso duas coisas: a primeira é que os países candidatos têm de fazer reformas para cumprir os requisitos de adesão, a segunda, de que finalmente se começa a falar, é que a União Europeia tem de se preparar para receber os novos Estados-membros", disse ao SAPO24.

E que reformas tem de fazer a União Europeia, uma vez que os critérios de adesão estão predefinidos? "As reformas são, por um lado, institucionais, a União Europeia não pode funcionar com 35 ou 36 Estados-membros com as mesmas regras que tem hoje para os 27, que já têm as suas dificuldades, sobretudo no que respeita ao processo de decisão", considera Pedro Silva Pereira.

"Por outro lado, há a questão financeira. Evidentemente que a União Europeia não pode avançar para um alargamento - nove países candidatos e o Kosovo a querer juntar-se à lista -, com o mesmo orçamento que tinha para os 27 Estados. Ter 35 ou 36 países vai obrigar a mais compromissos financeiros e isso significa reforçar o orçamento".

O deputado europeu Carlos Coelho, eleito pelo PSD, do grupo PPE (democratas-cristãos), faz as contas: "Sabemos há muito que os recursos são claramente insuficientes. Quando Jacques Delors era presidente da Comissão Europeia e éramos 12 Estados-membros, o orçamento comunitário previsto era 1,27% do PIB. Agora somos 27 países e o orçamento é menos de 1% do PIB, ronda os 0,97%, 0,98% (chegou a ser 0,95% ao nível dos pagamentos)".

E de lá para cá o número de Estados-membros aumentou de 12 para 15, de 15 para 25, de 25 para 27, depois para 28 (até voltarmos aos 27, com o Brexit). "Alargámos as políticas e reduzimos o orçamento, não em valor absoluto, mas em valor relativo. É obvio que isto não dá", diz o eurodeputado, membro da Comissão do Controlo Orçamental. "A percentagem dos recursos que damos à gestão europeia é manifestamente insuficiente para dar resposta aos problemas".

A UE também se endividou: empréstimo começa a ser pago em 2028

Uma coisa é certa, vai ser preciso encontrar novas receitas. Há várias ideias, mas nenhuma foi ainda discutida a fundo. Taxar áreas da economia relativamente fora do radar é uma hipótese provável. Mas nem todos os Estados-membros estão de acordo, há os que receiam que taxar atividades com muita dinâmica signifique incapacitar um setor inteiro e há os que querem aproveitar as receitas para ajudar aos cofres nacionais.

"Uma discussão envenenada, porque a sofreguidão dos orçamentos nacionais revelou o apetite para sugar uma grande parte desses recursos. Ultrapassado isto, evidentemente, vamos ter de ter novas fontes de receita", assegura Carlos Coelho. "Se não encontrarmos uma solução para aumentar as fontes de receita, teremos um buraco orçamental".

E os motivos são vários. Para começar, é que por causa da Covid-19, e também para alimentar o PRR - Plano de Recuperação e Resiliência, a UE viu-se obrigada a ir ao mercado, que é como quem diz a pedir um empréstimo, que agora terá de pagar com juros. Vai haver um momento, já a partir de 2028, em que o já parco orçamento comunitário vai ficar ainda mais reduzido depois de retirada a fatia para pagar esta dívida.

Que vai sentir o problema na pele são sobretudo os países que mais dependem do orçamento comunitário, desde logo aqueles que beneficiam de políticas de coesão, como Portugal. Mas não só. O relatório de que fala Pedro Silva Pereira identifica também "problemas muito especiais" na área da política agrícola (PAC). "Se não assumirmos esses desafios e não discutirmos as soluções com tempo, podemos confrontar-nos com uma reação negativa", antecipa.

E lembra o que aconteceu com os agricultores um pouco por toda a Europa. "Vimos que alguns que eram muito solidários com a Ucrânia, quando isso implicou consequências para os seus agricultores e para a sua economia, saíram à rua para se impor. Temos de prevenir essas situações para quando chegar o alargamento estarmos preparados".

Carlos Coelho recorda que Portugal já estava na União Europeia quando foi publicado um estudo que dizia que se a Turquia entrasse para a UE todo o orçamento comunitário, os tais cerca de 1% do PIB, não seria suficiente para pagar a PAC daquele país. "Se entrasse com as mesmas regras que Portugal, só aí sorvia o dinheiro todo". É por isso que "as adesões têm de ser vistas caso a caso, nalguns países não vai haver problema nenhum, noutros vai".

"Já passámos por isso. Batemos à porta da União Europeia e vimos alguns países europeus a olhar para Portugal e para Espanha como um sorvedouro de recursos, por estarem muito atrasados, precisarem de muito dinheiro para se desenvolver. A PAC entrou em concorrência, os franceses não queriam. Mas depois das resistências iniciais a Europa não nos bateu com a porta na cara, abriu a porta, apoiou com ajudas de pré-adesão, disse bem-vidos ao clube", lembra o deputado europeu.

"Porque no Tratado de Roma há uma impressão digital de alargamento, os seis países signatários convidam os outros povos da Europa a juntarem-se aos seus esforços. A lógica da fundação da Europa não é a de um clube fechado, é a de convidar outros países, a da integração. Portugal não tem mais que retribuir a generosidade de que beneficiou, agora que outros batem à porta".

"É mais difícil dialogar com a Google do que com a China"

"A Comissão Europeia é muito pouco ambiciosa [na comunicação que fez sobre a matéria], diz muito pouco ou quase nada sobre as questões financeiras, não fala da política de coesão nem sequer da política de agricultura, e mesmo no que diz respeito às reformas institucionais refere vagamente a necessidade de explorar o potencial ainda disponível no Tratado de Lisboa, mas não menciona outras questões importantes, como a composição das instituições. Entrando mais membros, precisamos de recompor o Parlamento Europeu, a Comissão Europeia, certamente não vamos querer ter um governo europeu, 37 comissários. Há várias questões institucionais que o Parlamento identificou e que a Comissão nem sempre assumiu na sua agenda de trabalhos", critica Pedro Silva Pereira.

Os cenários em cima da mesa são vários, para o alargamento e para o financiamento. Se as metas dos países candidatos à União Europeia estão bem definidas - critérios de Copenhaga (Conselho Europeu de 1993): a estabilidade das instituições que garantem a democracia, o Estado de direito, os direitos humanos e a proteção das minorias; economia de mercado a funcionar; capacidade administrativa e institucional para aplicar os direitos comuns e para assumir as obrigações decorrentes da adesão à UE -, o mesmo não se pode dizer das reformas necessárias na União Europeia para acolher os novos Estados-membros.

Em matéria de financiamento, a ideia é ir buscar dinheiro ao universo do sector digital, das transações financeiras e a alguns domínios do ambiental, onde pode haver a dupla vantagem de induzir comportamentos mais amigos do ambiente e ter uma fonte de receita adicional. Mas é preciso avançar. E, como dizia a eurodeputada Maria Manuel Leitão Marques, também eleita pelo PS, "é mais difícil dialogar com a Google e as gigantes digitais do que com a China".

E voltamos ao discurso de Charles Michel: "Na UE, o 'grande alargamento' deu-nos mais influência global. O nosso mercado interno é o maior do mundo. E tornámo-nos a segunda maior potência comercial global de bens, depois da China e à frente dos EUA. Isto deu-nos muito mais peso e uma posição mais forte em fóruns internacionais como o G7 e o G20. Deu-nos também mais impacto na promoção dos nossos valores democráticos e das nossas normas ambientais".

Mas também há entraves. "O optimismo de 2004 parece ter acontecido há muito tempo. Hoje enfrentamos três grandes choques. O primeiro é o choque que enfrenta o nosso mundo natural, o clima e a biodiversidade. O segundo é o choque da tecnologia, a revolução digital e a inteligência artificial. O terceiro é o choque de uma transição geopolítica caótica".

"Durante décadas, considerámos a paz, a segurança e a prosperidade garantidas e, ao mesmo tempo, tornámo-nos excessivamente dependentes. Na energia da Rússia, nas matérias-primas essenciais da China e até na defesa dos EUA. E permitimos que se desenvolvesse um fosso perigoso entre a nossa própria competitividade e a dos nossos principais rivais. Portanto, agora devemos recuperar o tempo perdido", resumiu o presidente do Conselho Europeu.

Há vinte anos dez países (Chipre, Malta, Chéquia, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Polónia, Eslováquia e Eslovénia) e trouxeram mais 75 milhões de pessoas para o universo da União Europeia. Agora, nove países (Albânia, Bósnia-Herzegovina, Geórgia, Moldova, Montenegro, Macedónia do Norte, Sérvia, Turquia e Ucrânia) trarão cerca de 145 milhões, a juntar à população atual de perto de 450 milhões.